De Aluno a Artista: as Dinâmicas da Inventividade do Estatuto e da Herança na História do Ensino Artístico em Portugal (1780-1983)
Jorge Ramos do Ó
O projecto visa identificar, no tempo longo, os debates culturais, as soluções institucionais e as práticas relacionadas com a formação inicial dos artistas em Portugal. Problematizará as dinâmicas em que a instituição escolar se concebeu de modo inverso do habitual, ou seja, se mobilizou sobretudo para fornecer as ferramentas cognitivas e as técnicas instrumentais para que o aluno de artes visuais, música, teatro e dança se imaginasse apto a produzir artefactos, intervindo assim sobre o mundo, e não tanto, como sucedia no ensino regular, a traduzir verdades científicas estabilizadas. Não se procura, assim, redigir uma história da educação e do ensino das artes em Portugal, no período entre 1780-1983, mas, antes, identificar e discutir os sentidos das várias mudanças que nesse lapso envolveram uma operação social complexa, a da transformação do aluno em artista. Partimos de três tópicas – Inventividade, Estatuto e Herança – que, embora transversais a actores e instituições, delimitam com muito rigor um território analítico.
À volta da questão da Inventividade iremos reflectir sobre os discursos que associaram directamente a aprendizagem com mudanças internas do eu. Abordaremos a meta-narrativa de todos os programas educativos do Estado-nação – a que prescreve que uma actividade só se justifica plenamente quando corresponde a uma necessidade manifesta do aluno. Procuraremos mostrar que a defesa da educação artística reforça o objectivo – simultaneamente económico e moral – do trabalho como uma actividade unificada da alma e integradora no plano social. Duas séries discursivas delimitam as fronteiras maiores do território da educação artística. Uma é constituída pelos textos de pedagogos e educadores portugueses, dos séculos XIX e XX, nos quais se defendeu que a arte devia ser utilizada na escola não como uma função de contemplação da beleza, mas sobretudo para despertar a criatividade, promover a formação humanística, o equilíbrio físico e psíquico dos escolares. A outra é constituída por documentos, manuscritos e impressos, produzidos pelos próprios alunos, e permite perceber a auto-definição da condutas individuais por intermédio generalização das estéticas da existência e do princípio de que para o jovem artista a vida se concebe ela mesma como uma obra de arte.
Em torno do Estatuto analisaremos sobretudo tensões e fracturas, inscritas na natureza da missão e da oferta do ensino artístico especializado. Os estudos actuais mostram a sucessão de dois grandes paradigmas organizacionais que nos levam de uma discussão relativa à identidade pessoal para uma lógica de hierarquização dos perfis sociais. Há uma primeira genealogia – observável no discurso político reformador e no interior das instituições educativas – que começou por associar o ensino das artes à função polícia, tal como ela foi conceptualizada no final de Setecentos, ie, como portadora de um projecto de regeneração social. A aprendizagem das artes ligou-se à prática do ofício, como um destino para a criança órfã ou para o menor tutelado pelo Estado. Artista era o que dominava uma técnica manual, adquirida na relação mestre-discípulo e recebida no quadro da classe. Na viragem do século XIX para o XX, impôs-se um outro modelo postulando que a formação artística valorizaria a liberdade e o individualismo do génio, o que se traduziu numa desqualificação das aprendizagens escolares como processo de formação da competência artística. Esta ideia, de raiz claramente romântica, esteve relacionada com a estabilização consensual na sociedade portuguesa do perfil do artista como um actor social acima e fora dos condicionamentos comuns.
A tópica da Herança pretende reconstruir o processo de disponibilização, no currículo, de ícones e de referências patrimoniais com o objectivo de desencadear nos alunos a sua própria discursividade. Nesta discussão à volta da estabilização das fontes históricas de inspiração do aluno, o Projecto dará especial enfoque às discussões académicas e técnicas em torno da identificação, salvaguarda e valorização dos patrimónios artísticos nacionais, porquanto nelas se organizou uma gramática visual da memória colectiva que, mantendo grande estabilidade ao longo da diacronia, constituíu também um pilar estruturante do idioma visual de cada aluno.
A Equipa é constituída por investigadores séniores e alunos de doutoramento que têm produzido sínteses e monografias relativos tanto aos debates quanto às realidades institucionais do ensino artístico português. Este Projecto mobiliza-se para um intenso trabalho analítico sobre núcleos documentais mais específicos e ainda inéditos, como sejam os fundos de arquivo da Casa Pia de Lisboa, das Academias e Escolas de Belas, os relatórios de bolseiros ou a preparação das reformas do ensino. Além de uma narrativa histórica, serão disponibilizadas à comunidade científica bases de dados prosopográficas e digitalizadas na íntegra fontes impressas e manuscritas.
FCT. PTDC/HIS-HEC/104504/2008